terça-feira, 30 de agosto de 2011

Corrente cadeado

Alma lasciva que lá se vai, casta melodia que no caos se esvai.
Profundo, profano e covarde lamento que no vão momento, subitamente escora-se na espera.
Pássaro curto, que faz da gaiola sua terra natal e do vento, seu porto vivido em par.
Seio infundido, coração pertencente e preenchido.
Ilhado receio do abandono, arado anseio do encontro.
Léguas, placas, faixas, nuvens, praias e ponteiros.
Lanço-te o coração e logo... tenho-te.



Basta o alguém para que o além seja ninguém.



sábado, 20 de agosto de 2011

Pura flor de vento gris



O silêncio do irrespondível é o ópio de um coração corrompido pelas doçuras de um tempo que não escorre entre as vísceras. Destilar o veneno das entrelinhas entre as cavas veias do passado terno, faz-me correr o risco de sugar o sublime do mundo em pupilas de cobre e sorrisos glaciais.
Enquanto cada vértebra aninha-se em postura de desconforto, o peito desalinha a nuance dos penares vivos por mil teclas de perdão.
Quando a vertigem torna-se súbita pela sua própria força e instantaneidade, abro as brechas para ver além de mim. Lá fora o tempo desmorona-se em brisas compostas de âmbar, vanilla, sândalo, fava, anis e madressilva. Aqui dentro, o vão momento sucumbe do impressentido volto logo.
Há tanta vida na vida que me admira o medo de viver viva aquilo que se viveria uma vida toda.
De que adianta vencer guerras se a paz não é declamada como triunfante?
A sorte é de que o tempo tende a temperar novas manhãs. Novos gritos. Novas poesias. Novas alegrias.
E quem sabe, um novo e velho você.


quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Tudo aquilo que não cabe em caixas de papelão.

Seu ninho era quente, e mesmo que emaranhado de espinhos, era confortável e carecente. Mas quando seus ossos começaram a esticar, as dores apareceram por toda parte e minúsculo ficou o espaço para que seus ossos pudessem tomar forma. Somente um sutil bater de asas poderia acariciar seus penares, mas não queria aprender a voar. Suas asas estavam cortadas por amor e na garganta sentia a dor das palavras presas. A pequena menina já não era tão pequenina, mas seus olhos continuavam os mesmos, mas naquele momento estavam fixos e perdidos. Sem horizontes e sem ternura. Estava imóvel e frágil como um jarro de cristal. Ela não conseguia mais permanecer à margem de si mesma e de colos rompidos pelo silêncio. Pegou impulso, esticou as asas de porcelana e foi num fluxo de vento atormentante que lançou-se ao mais profundo abismo aterrador. Espatifou seu coração em milhares de pedaços estrídulos. Ali estava seu velório. Desfalecida em seu próprio berço gemia a dor da morte. Assassinou a criança que existia em cada célula e descobriu que crescer era um torturante palco de luz, a distância era um grito vermelho. Seu peito estava dilacerado e nada, nenhuma dor, nenhum ser humano havia causado amputação parecida a qual pudesse ser similar ao corte profundo que ela mesma feriu-se.
Metamorfoses podem te transformar, mas algumas transformações precisam de dor. Ali estava eu, sendo aguardada em um útero quentinho. Ali estava eu, lutando para sobreviver numa incubadora enquanto meus pais acariciavam minha mão pelo buraquinho. Ali estava eu, perdendo meu primeiro dentinho, cantando "Nesse meu mundo só meu" da Alice no país das Maravilhas, indo para o mar de mãos dadas com meu pai, sentindo a aflição do meu primeiro dia na escola. Ali estava eu, brincando de boneca sozinha no gramado. Ali estava eu, ouvindo o coração da minha irmã bater pela primeira vez. Ali estava eu chamando Deus de "Papai do Céu". Ali estava eu, desenhando na varanda. Ali estava eu, brincando com a Pintie. Ali estava eu, na varanda observando as janelinhas dos vizinhos. Ali estava eu, com febre, sendo cuidada pela minha mãe tão cuidadosa. Ali estava eu, nos natais cercados da família. Ali estava eu, no lugar onde todos deveriam voltar um dia, o lar da infância.
Mas agora aqui estou eu, com ombros maiores e meias rendadas. Aqui estou eu, com um batom vermelho e olhos pintados. Uma mulher com cicatrizes de menina que jamais irão embora das minhas lembranças mais doces. Viver é desabar-se e edificar-se.
A tempestade que cai agora, acabará pela manhã e todos nós um dia poderemos ver um arco-íris preencher este céu nublado em sorrisos de reencontro.