quarta-feira, 9 de junho de 2010

Era perceptível


André abandonava
Laura estava diante do seu primeiro amor. Não sabia muito bem como lidar, era nova demais para compreender como manteria algo tão forte dentro de si mesma. André era um jovem de beleza avassaladora que cultivava um amor profundo por ela. Era divertido, sensato e objetivo mas às vezes esquecia que Laura precisava sentir-se livre. André tocava guitarra e adorava bandas antigas. André gostava de dedilhar os traços de Laura enquanto ela dormia. André amava cozinhar com ela. André era escritor, mas nas veias era mais real que o próprio respirar. Em um show do Metallica, Laura gritou: "Quer casar comigo?" e recebeu um beijo com gosto de álcool como resposta. Laura de alguma maneira esperava que aquilo fosse um sim. Viveram um romance inesquecível, transpiravam paixão adolescente. Namoraram por longos anos até André mudar-se para o Canadá com sua família, juraram que isso não seria problema. Laura cresceu, André não mais. Eles nunca mais se viram, era tarde. Laura sentiu-se abandonada, ele nunca havia ligado para ela, nem mesmo mandado uma carta. André morreu em um acidente de trem. Laura nunca soube. Até que...
Laura conheceu Eduardo.


Eduardo magoava
Eduardo era um homem interessante, culto, não muito bonito. Eles não eram tão felizes juntos, mas Laura engravidou. Laura não gostava da idéia de ser mãe, mesmo assim os teve. Depois de sete anos de casamento, resolveram viajar sem as crianças.
Laura tinha acabado de vestir seu novo biquíni. Era cor de rosa e tinha lacinhos delicados nas laterais, mal podia esperar para chegar à praia. Sua pele era tão branquinha quanto um algodão mas ela não ligava, não via a hora de mergulhar. Ao chegarem, Laura arrumou as cadeiras, as cangas e o guarda sol. Era a segunda lua de mel do casal, seus filhos Bruno e Giovanna estavam em casa com a irmã de Eduardo.
Tirou o vestido, passou o protetor solar, colocou um lindo óculos de sol e sentou-se na cadeira. Seu marido a observou dos pés aos fios de cabelo e disse: "É melhor tomarmos cuidado para não comermos muito na viagem!!"
Laura logo entendeu que ele não havia notado que seu biquíni era bonito, ele observou o seu corpo e construiu com mais um saco cheio de tijolos um muro de insegurança quanto à auto imagem de Laura. Foi tão forte sentir-se feia que mesmo depois do divórcio em 1989, ela nunca mais saiu do maiô e mesmo assim ainda sente-se complexada dentro de um. Eduardo nunca a procurou novamente. O estranho era que Laura era uma mulher linda, não havia nada de errado com ela. Até que...
Laura conheceu Otávio.

Otávio esquecia
Otávio sempre foi um homem repleto de amigos. Possuia grande irritação nos olhos e sobrancelhas medonhas, pareciam taturanas. Otávio gostava de deixar a barba falhada e usar blusas largas. Nunca levou Laura para jantar sem as crianças. Odiava o macarrão que Laura fazia com dedicação e sorrisos múltiplos enquanto ouvia Chico Buarque.
Otávio odiava o barulho que os saltos de Laura faziam no piso de madeira. Odiava seu perfume forte e o modo que ela dormia esparramada na cama. Otávio era executivo e Laura dava aulas de piano. Otávio tinha os nervos quentes e Laura era a paciência em pessoa. A escova de dentes de Otávio era azul e a de Laura, lilás. Laura odiava os pelos de Otávio e o modo que ele fazia barulho mastigando. Otávio amava as pernas de Laura e seus seios fartos. Laura gostava de comprar roupas enquanto Otávio passava horas bebendo com seus amigos. Otávio nunca observou como Laura era angelical ao dormir. Otávio não gostava de sair com Laura. Ela sempre foi uma mulher delicada e entregue aos seus dons. Laura possuia fundos olhos azuis e silhueta afinada. Quando tocava o piano da sala, seus filhos sentavam para ouvir aquela corrente sonora como se a mãe fosse um anjo a ter caído do paraíso. Otávio via fórmula 1 e não comia salada. O tempo foi passando e Laura, Otávio, Bruno e Giovanna ainda estavam juntos.
Uma sexta-feira de novembro havia chegado. Laura acordou radiante, queria estar linda. Soltou seus fios claros, colocou seu perfume favorito e passou um batom de cor forte. Verificou se tinha algum telegrama, olhou a caixa de emails, passou meia hora olhando para o telefone. Ouviu alguém na porta e pensou que fosse o florista. Não era. Foi ao mercado com as crianças, comprou tudo o que precisava para fazer um jantar maravilhoso. Ao chegar em casa, arrumou todos os quartos, passou os ternos do marido e foi preparar o jantar enquanto as crianças brincavam. Já havia passado da hora de Otávio chegar. Laura ficou preocupada, ele não antendia ao celular. Laura pensou que ele deveria estar preparando uma surpresa para ela. O relógio bateu três da manhã. Laura observou o jantar tão frio quanto o seu marido, foi dormir com seus filhos e deixou que as lágrimas pudessem lavar suas bochechas da falta de sorrisos.
Otávio chegou no dia seguinte e havia esquecido de que tinha sido aniversário de Laura. Laura nunca o contou. Agora tinha três filhos: Breno, Giovanna e Otávio. Laura morreu aos quarenta e três em uma parada cardíaca ao lado de Otávio e desde aquele dia que ele havia esquecido de seu aniversário, nunca mais tinha sido sua mulher. Ela tinha feito o papel de mãe. Se não era uma mãe atenciosa aos seus filhos, imagine ao filho de cinquenta e oito anos. Eduardo ganhou a guarda dos filhos e dois meses depois, Otávio casou com a secretária de vinte e seis. Até que...
era tarde, Laura não conheceria mais ninguém.

Laura desperdiçou

O importante não foi quem supostamente esqueceu, magoou ou abandonou. No final era perceptível que Laura havia jogado fora a oportunidade de ter sido plenamente amada ao não ir embora das suas relações frustradas. Para ela, fugir do sofrimento era ausentar-se da própria vida. No último segundo de vida Laura entendeu tudo. Ela sentia falta de alguma coisa que não estava lá, mas não sabia o que era. Achava que era falta de casa cheia, de muitas pessoas. Quem sabe até fosse falta de si mesma. De pronto soube, já era.
Até que...

Laura reencontrou André.




5 comentários:

Taw disse...

O texto quer dizer que o André já tinha morrido?

:/

hum... penso que as esposas, tinham que ter como responsabilidade lembrar aos maridos de valorizá-las... o mesmo deveriam fazer os maridos, na minha opinião...

diálogo não resolve essas coisas? :/

sei lá... meio triste isso... :/

Paula Maximiano. disse...

Não, Taw. Creio que houve uma má interpretação textual. É um texto figurado, tem como base a mensagem de que Laura ao sentir-se abandonada, não procurou saber qual eram as causas. André morreu sem que ela soube-se, era de fato o amor que iria com Laura pela vida. Laura vai criando uma dinâmica de desleixo em relação a própria história por vivenciar relacionamentos que não eram ideais para sua formação psicológica. No final, ela tem o direito de perceber que ele sempre esteve lá. E ai ela percebe o quanto desperdiçou a vida colhendo migalhas das relações que escolheu para sentir-se amada. Óbvio que todo e qualquer relacionamento precisa de valorização e respeito para funcionar. Diálogo pode resolver sim. Mas nem quis tratar necessariamente sobre relacionamento nesse texto, foi figurado mesmo. Quis deixar embutido que não importa como as coisas aconteçam, sempre tem uma lógica. Não importa o que façam com a gente, é sempre mais importante perceber o jeito que reagimos a isso. But, claro! perceber se é isso mesmo, como foi no caso de André. Que acabou deixando a mensagem de "Para todas as coisas possui um bom encontro."

Taw disse...

hum... não pensei que fosse real, né, Paula...

-.-

:P

hum... que coisa... é... mas é mesmo muito difícil viver uma vida já voltada para relacionamentos desse tipo com outras pessoas...

hum... é... se a vida é nossa, devemos prestar mais atenção em nós do que no que vem de fora.

é como eu penso.

GMDourado disse...

Acho que esse foi meu posto favorito do blog todo.

Acho que se a mulher tem que PEDIR para o homem para ele valorizá-la o relacionamento já está um pouco condenado. Ou vc valoriza ou não. Isso tem que ser uma iniciativa. Não algo a ser pedido. Isso devia ser básico e não um privilégio.

Comunicação é importante. Mas o problema é que geralmente o homem obriga a mulher a fazer papel de chata. A fazer com que ela comece as DR.

Aí é tenso.

Jéssica Almeida disse...

Gostei muito muito.E olha que não me pego gostando de textos assim, facilmente. Boa construção, boa linha de acontecimentos. No final, uma onda de arrepios passou por mim, e eu me dei conta de que valorizo seu blog. Estou seguindo! Abraço.

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